terça-feira, 6 de novembro de 2012

TV X VIOLÊNCIA


 


O debate acerca do tema TV x Violência vêm crescendo exponencialmente ao longo dos anos. Pais (alguns), psicólogos e estudiosos da área estão preocupados com a exposição - sobretudo das crianças - aos excessos de violência e agressividade presentes na televisão. Os canais apresentam cada vez mais em suas grades de programação, desenhos, filmes e novelas, onde diferentes atos de violência são legitimados. Fora o sensacionalismo de muitos telejornais, que apelam para altas cargas de emoção, a fim de prender a atenção do telespectador, ganhando assim cada vez mais o almejado ibope. Mas será que essa incessante configuração da violência nos canais de televisão pode influenciar uma pessoa ou a sociedade a tornar-se mais agressiva? Ou será essa caixa com uma tela no meio, um espelho de nossa própria sociedade?



Vamos começar falando do objeto e sua sustentação. A televisão vive de anúncios publicitários, e esses necessitam de uma audiência considerável, a fim de angariar cada vez mais telespectadores e consumidores á visualizarem suas propagandas e produtos. É disso que vive a mídia televisiva. Ela prima pela audiência. Essa é sua garantia de existência. Programas muito calmos, sossegados, com poucos sons e cores não agradam, levando ao tédio e ao sono quem está assistindo. Não gostou? Basta um “clique” com o dedo no controle para mudar. Você que faz a seleção e decide o que quer ver. Os donos das grandes concessões e produtores sabem muito bem disso, e incorporam à programação características que prendam a atenção do telespectador: ação, agitação, emoção, agressividade e principalmente violência.


A discussão em torno da influência que esse meio pode trazer ao ser humano começou em 1940, com a entrada definitiva dos aparelhos nos lares americanos. Diversas pesquisas foram feitas e comprovaram a tese da autoridade máxima em saúde dos Estados Unidos na época, Surgeon General: “A televisão realmente tem efeitos adversos em certos membros da sociedade”. Pesquisas realizadas com crianças, demonstraram com clareza, a relação da exposição da violência exibida pela mídia e o desenvolvimento de comportamento agressivo. O problema reside no estado semi-hipnótico que a televisão induz (H.E.Krugman (‘Brain Wave Measurements of Media Involvement’, Journal of Advertising Research, 11:1, Feb. 1971, pp. 3-9), que faz com que o espectador grave certas imagens e cenas agressivas em seu subconsciente, podendo aflorar em um momento de tensão ou stress, influindo na ação, pensamento ou sentimento do indivíduo em questão.

Claro que é muito simplista colocar esse fardo na televisão. Rechear a programação com violência até pode ser um fator que desencadeie comportamentos agressivos em uma criança, como revelaram as pesquisas. A criança pode se traumatizar, dependendo da faixa etária. Porém essa influência direta depende também de outros fatores, como a condição geral de crescimento e vida e o universo psíquico da pessoa. 


Menos família, mais TV

 

E quanto aos pais, que podem e devem exercer certo controle sobre o conteúdo visto pelos filhos? 



Meninos e meninas estão assistindo cada vez mais televisão. Homens e mulheres também. Em todos os lugares urbanos que vamos encontramos uma(s) bendita televisão: lares, bares da esquina, salas de escritórios, estádios de futebol, elevadores, ônibus, camelôs... Muitos pais usam o aparelho como distração  para que seus filhos fiquem mais 'calmos' com o entreterimento dos programas e desenhos. Porem a grande maioria não repara no estado semi-hipnótico e nas influências que os programas podem produzir na mente e no futuro comportamento de seus filhos. Jerry Mander, em seu livro Four Arguments for the Elimination of Television (New York: Morrow 1978), desenvolve um interessante raciocínio, no qual relaciona a subestimação que certas pessoas fazem da influência que o aparelho pode causar, com a natureza do mesmo, onde a imagem é irreal. Essa “virtuosidade” faz então com que muitos pais não acreditem ou não percebam o verdadeiro poder de ascendência que a televisão e seu conteúdo produz. Por exemplo, os pais evitam que seus filhos vejam na rua ou em casa situações extremas e emotivas, como um acidente de carro, uma briga generalizada com sangue à mostra, ou até mesmo as tradicionais desavenças entre casais nos lares, quando um dos dois fala: “Silêncio, não vamos brigar aqui. Nosso filho pode ouvir e isso não vai fazer bem a ele.” Mas quanto à TV não há esse mesmo pensamento, essa percepção. Quando tem um jantar importante para ir, ou simplesmente querem sair pra se divertir, ficam aliviados ao saber que seu filho estará sentado na poltrona no meio da sala, assistindo ao seu desenho ou filme predileto. Não percebendo assim, a exposição a episódios de violência gratuita e banalizada que vemos hoje. Os tempos modernos também vêm diminuindo o papel da família de informar e apresentar um modelo correto de formação para as crianças e os jovens. Pais passam menos tempo com seus filhos, que assistem, assimilam e se identificam cada vez mais com os valores e mensagens que estão recebendo. 

Outra questão interessante e que causa algumas divergências, é a forma como a criança interpreta aquilo que está vendo: se relaciona com uma ideia de fantasia ou a incorpora à sua realidade. Cada criança, diferente uma da outra, vai acabar interpretando a cena exibida em um desenho ou filme ao seu universo particular, que se relaciona ao mundo exterior. É difícil assim traçar uma análise generalizada. Um estudo da psicanalista Ângela Vorcaro, do Departamento de Distúrbios da Comunicação da USP, ilustra bem essa asserção: "Um de meus pacientes, uma criança autista, brincava com um aviãozinho amarrado em um barbante e fez com que o mesmo se chocasse contra uma torre de blocos que havia construído. Outra criança que atendo que não é autista, me perguntou se eu sabia que o avião errou o caminho e trombou no prédio, mas que o piloto se salvou". Visto essa mídia ser uma poderosa influência ao ser humano, e muito difundida por toda a sociedade, é imprescindível que se exerça um cerceamento sobre o conteúdo exposto aos menores. Controle que vai soar cada vez mais como um enorme desafio ao pais, na medida em que as emissoras não respeitam a veiculação de certos conteúdos em horários determinados. Telejornais, filmes e novelas dia após dia estão cada vez mais recheados de violência e brutalidade, em horários que por lei deveriam ser destinados a uma programação mais social, com o intuito de informar, educar e entreter (com qualidade). Mas a escada capitalista é aqui representada pela incessante disputa pelos pontos do ibope, que requer altas e chocantes doses de violência, combinada com um sensacionalismo apelativo (no caso dos telejornais) que mantém o público fiel e aficionado. Esquece-se assim de se fazer um jornalismo informativo e de boa qualidade, que não apele todo momento para o lado emocional, e sim para uma postura mais crítica, que é o que se deve enfatizar ao público. Mas vá falar isso para as emissoras e os barões da imprensa capitalista. Estão deixando de informar para vender. Eles se importam com isso?


O assunto da violência em nossa sociedade é muito mais complexo. Ele está presente em todos os lugares, inclusive nas casas de família. E a violência que refiro não é apenas uma porrada ou uma agressão verbal. Há muitos tipos de violência, algumas tão sutis que passam imperceptíveis aos olhos de todos. A exploração do mercado de trabalho, por exemplo, é uma violência. As palavras, a humilhação. E principalmente a intolerância de uns e muitos. A contribuição negativa da mídia pode se dar em propagar esses atos. Tudo que emociona o ser humano, causa perplexidade, atenção e curiosidade. É por isso que os mandachuvas da televisão, não vão alterar tão o quadro de constantes agressividades que engendram os mais variados programas. Cabe aos pais uma presença maior, não apenas com o objetivo de cercear o conteúdo e a programação que está sendo assistida no aparelho, e dizer “desligue a TV filho”, e sim instruir e mostrar, o que é ficção, realidade, contexto, discutindo a programação e apresentando uma visão crítica do tema em questão. Ainda temos programas muito bons, onde o compromisso da informação traz e revela um papel educador e social para o nosso futuro. Não queremos a volta da censura, longe disso. Mas precisamos de bom senso e mais respeito das grandes empresas televisivas aos valores éticos e familiares. Qualquer esforço nesse sentido será válido.
 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Movimentos!


A geração perdida que fez muitas cabeças se encontrarem e essa história de fugir de casa



Continuando na onda do primeiro post, compartilho parte de um trabalho sobre movimentos sociais, que fiz semestre passado durante as aulas da disciplina de Mídia e Discurso, ministrada por Rejane de Mattos Moreira, da minha querida Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. A foto acima mostra o dia em que Bob Dylan conheceu o doidão Allen Ginsberg, em uma praia famosa em São Fransisco no ano de 1965. Ao final do texto algumas fotos e as referências para o embasamento da pesquisa e da minha curiosidade.

                                                       
                                                     
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O MOVIMENTO

A história do movimento beat tem início no final dos anos 30. O cenário é os Estados Unidos do presidente Ronald Reagan, em plena crise econômica, apesar de vencedor no contexto do final da Segunda Guerra Mundial. Foi lá que alguns poetas, escritores e jovens de alma selvagem começaram a questionar a repressão e o modo de vida padronizado pelo consumo americano. Com uma percepção crítica e um ideal particular e libertador, buscava-se encontrar um verdadeiro sentido para suas vidas, diferente do que viam na TV ou no discurso dos pais. Enquanto a política da sociedade de consumo, baseada no chamado sonho americano não contagiava mais a juventude da época: começavam a surgir e pipocar novos projetos culturais e intelectuais alternativos, com poetas desvairados e escritores entorpecidos por drogas e ávidos por novas aventuras e desventuras autênticas e livres. Iniciam-se as viagens de mochila, a cultura da carona e tudo o que um espírito libertário e a estrada podiam trazer. Apertem os cintos...

UM TRIPÉ EXCÊNTRICO, EXPERIMENTAL, ESPONTÂNEO

A síntese da explosão do movimento aparece nas histórias e no novo jeito de escrever com liberdade e expressividade, sem as velhas “amarras acadêmicas” e os padrões de prosa pré-estabelecidos pela Europa. Um tripé de artistas-escritores-poetas-filósofos de fôlego avassalador ilustra bem o novo espírito. O trio, Allen Ginsberg, com Howl (O Uivo), William Burroughs, com Naked Lunch (Almoço Nu) e Jack Kerouac, com a obra On The Road (Pé na Estrada) começaram a falar o que antes não era dito; as angústias, anseios, dúvidas, frustrações, desejos, enfim, todas as emoções que estavam passando naqueles tempos. O lado sombrio do sonho americano era assim revelado: esquinas, bares e becos sujos por vigaristas, oportunistas, toxicodependentes, marginais, pequenos ladrões, todo tipo de ser. A identificação com essas figuras marginais se tornaria o eixo central da literatura beat. Kerouac era fascinado pelos vagabundos e andarilhos que atravessavam o país em trens de carga; Ginsberg era atraído por homossexuais, delinqüentes e incompreendidos em geral; Burroughs, por sua vez, vivia entre criminosos e viciados.




Essa nova geração buscava uma forma de se expressar e uma vida mais liberta e desregrada, onde a imaginação e a criatividade afloravam de maneira espontânea, sem prévias preocupações e anseios. Era época dos novos nômades, de dormir ao relento, de pegar a mochila e cair na estrada, seja de carona em carona ou em um calhambeque caindo aos pedaços. É desse jeito que Kerouac e sua turma botam os pés nas estradas para viver novas e alucinantes histórias, embalados pelo melhor ou pior do jazz americano, revirando o submundo dos subúrbios, se deparando com todo tipo de gente e situação: de trabalhadores itinerantes à vagabundos e viciados. Acreditavam na “elevação do grau de consciência” e seu fluxo contínuo, e por isso não rejeitavam drogas alucinógenas como a maconha, benzedrina e o peiote. Pode-se dizer que o lema da beat generation era Sexo, Drogas e Literatura. Ao invés de rock, preferiam mesmo o jazz do jukebox dos bares de estrada.

O termo beat, segundo consta na obra de Kerouac, veio de uma expressão que Herbert Huncke, um marginal e transeunte, usava com frequência: “I’m beat” – algo do tipo: estou fodido, quebrado, duro. Kerouac e seus companheiros gostaram do que ouviram e adotaram a expressão em seus escritos. A partir de então, a palavra passou a ter outros significados, sobretudo para ele o de batida (no sentido de ritmo musical, referindo-se a batida do bebop do jazz americano que o embalava em sua escrita). Entre outros significados estão o de porrada, de pulsação e até de furo (no sentido jornalístico).


A VIDA PELA ESTRADA

Mais que novas significações e gírias, o termo serviu para designar uma geração envolvida com um novo movimento literário e comportamental, que retratava as experiências de uma nova concepção e opção de vida pela estrada e com muita influência do existencialismo de Sartre. Jovens ao ter contato com a literatura beat passaram a procurar cada vez mais aventuras e experiências, na busca de empreender um novo sentido para suas vidas. Não tinham nenhum tipo de preconceito e discriminação, pelo contrário: jovens brancos conheciam e tinham contato cada vez mais com a cultura negra americana, sobretudo pelo jazz. É interessante notar essa influência e base que a cultura beat levou para outros acontecimentos posteriores: nos movimentos estudantis e na onda hippie dos anos 60, que herdaram causas como a ecologia e o amor livre e também na liberação feminista e no movimento homossexual, em parte consequências da luta dos beats pela liberdade sexual.



Uma frase do livro On the Road, que viria depois a ser cunhado pela crítica do times como a “bíblia da geração beat”- ilustra bem a ideologia e o espírito do movimento: “Nossas malas estão na calçada de novo. As estradas eram mais longas, mas não importava. A estrada é a vida”. Kerouac foi brilhante, ao descrever minuciosamente cada paisagem e lugar das planícies americanas, captando a sonoridade dos bares de estrada, das ruas e dos becos marginais das cidades americanas, após percorrer durante cinco anos, o país de leste a oeste, através da famosa Rota 66, com descidas frequentes ao México. Inaugurando uma nova forma de narrar, o resultado é reconhecido pela crítica como o puro reflexo do espírito de uma geração que passaria a transformar milhares de cabeças, influenciando futuramente todos os movimentos de vanguarda: o rock, o pop, os hippies, o movimento punk e tudo o que mais sacudiu o século XX na arte, na cultura e no comportamento dos jovens.
  
A questão é que tal geração se transformou em muitas. Segundo o historiador e jornalista Eduardo Bueno, “Nenhum outro livro deste século deflagrou uma revolução comportamental maior do que a obra de Kerouac. Bob Dylan ao ler On the Road, fugiu de casa. Hector Babenco, de O Pixote também. Jim Morrison fundou o The Doors.” Não obstante, no final dos anos 50 John Lennon usa o termo beat para dar alcunha à sua nova banda: The Beatles. Surgiam também novas bandas de introspecção e efervescência libertária por todo o mundo, como o Pink Floyd na Inglaterra, Raul Seixas, Cazuza e Paulo Leminski no Brasil.






CURIOSIDADES

Os beats foram os primeiros a difundir, para a juventude ocidental, zen-budismo, a meditação transcendental, as experiências da vida ao ar livre, as caronas, a celebração de si mesmo em harmonia com o universo.

On the Road virou filme nas mãos do cineasta brasileiro Walter Salles, com Kristen Stewart (Crepúsculo) e Kirsten Dunst (Homem-Aranha) como personagens principais. O filme já estreou no Brasil e foi elogiado em no Festival de Cannes.

Into the Wild (Na Natureza Selvagem), de Sean Peen é considerado um filme beat. Ele descreve a viagem de um jovem que decide largar a universidade e a vida comum que levava nos Estados Unidos para sair viajando com objetivo final de chegar ao Alasca e viver sozinho, sustentando-se da natureza e do que encontrava no caminho.

“Beatnik” não é um sinônimo, mas um termo depreciativo criado pela mídia no final da década de 1950 (apareceu pela primeira vez no San Francisco Chronicle de 2 de abril de 1958) para designar jovens que copiavam o estilo beat. Mais tarde também ficou associado aos acessórios coloridos, tais como, óculos, pulseiras e boinas.


No seriado Os Simpsons, os pais do personagem Ned Flanders são beatniks que o colocaram num hospital psiquiátrico enquanto criança, depois de terem tido dificuldade em discipliná-lo, devido ao seu mau comportamento (A mãe dele queixa-se: "Já tentámos tudo, e estamos sem ideias!"). Em outra série famosa da televisão animada, Doug, a irmã mais velha de Doug, Judy Funnie (na foto), é retratada como uma beatnik.






O filme dirigido por Walter Salles segue fielmente a obra original ainda que a essência não esteja tão bem reproduzida. Talvez pelo enfoque nas cenas de sexo e de diversão. O destaque fica para a fotografia de Eric Gautier, dos premiados diários de motocicleta e Na Natureza Selvagem. Em On the Road não deixa de ser impecável nas paisagens, mostrando todos os contornos e nuances dos Estados Unidos. Um bom road-movie pra quem não leu o livro. 




Kerouac com seu rolo de papel ininterrupto; "isso não é literatura, é datilografia"  disse maliciosamente na época Truman Capote 


               Versão do rolo original datilografada por Kerouac exposta no Museu das Letras e Manuscritos em Paris



                               Charlie Parker: Mestre do jazz bebop que embalava as jukebox nos anos 50 







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KEROUAC, Jack. On the road. Porto Alegre: L & PM pocket, 2003


http://www.guerradestilos.blospot.com.br/  - artigo BÍVAR, Antonio. Beats x Hippies.

WILLER, Cláudio. “Geração Beat” LPM Pocket


www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=1287 - A Geração Beatnik e seu desprezo pela sociedade norte-americana dos anos 50

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A Onda Beat





Minha historia com a turma de Kerouac e a geração beat começou no final das férias do ano passado. Era véspera da minha viagem de volta para a capital tropical do Brasil, o Rio de Janeiro. Eu estava no apartamento da Rua Otávio Dutra, limpando e ajeitando as coisas do meu velho, que estava com uma doença séria da qual não valeria a pena falar, quando – em meio há centenas de livros, revistas e recortes de jornais antigos- fitei com os olhos aquele L&PM Pocket amarelado. O título sugestivo logo atraiu minha atenção. Eu não conhecia o autor Jack Kerouac e a única referência - que pelo menos eu achava que tinha sobre o tema - era uma loja de aparência psicodélica que ficava há dois quarteirões do consultório do meu pai. Vendia brincos, piercings, argolas, correntes, vários acessórios e coisas malucas. Beatnik era o nome. 

Aproveitei o voo para continuar a leitura que eu já havia começado avidamente no dia anterior. Como é bom ler em aeroportos e aviões, são raros ambientes onde não aparece algum idiota pra te importunar. Uma vez consegui ler quase todo Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, na ponte aérea Porto Alegre-Rio.

O contato com a literatura de Kerouac e sua história de andarilho pelos Estados Unidos me fez lembrar muito da época em que pegava o Corolla 98 rebaixado do meu pai emprestado, para viajar rumo às belas praias de Santa Catarina e ficar por lá um bom tempo. Era boa demais a sensação de botar o pé na estrada, sem saber direito pra onde agente ia ou em que canto iríamos ficar e dormir. Um pouco de independência pro nosso corpo. E eu sentia que precisava daquilo. Ver e fazer as coisas do meu jeito, viver. Sabe aquela coisa de criança de acampar no quintal de casa e tal? É mais ou menos isso só que em outra dimensão.

Deixemos por um bom tempo os pais, as pessoas, os lugares, alguns sentimentos e o almoço e janta certos de todos os dias; tudo o que já sacamos e vivemos da vida naquele esquema de uma capital nacional. Então com tudo o que eu precisava (barraca, panelas, meu cão, latas de atum e gasolina) eu ligava o som, acendia um cigarro, e só o que eu podia vislumbrar era aquela estrada imponente à minha frente e tudo o que estava por vir. O novo. Rrruummmmm!

Sempre gostei da palavra liberdade e seu significado fora da nossa sociedade (não somos livres), e por isso também me identifiquei com a obra e vida de Kerouac, que parte de experiências libertas, novas e autênticas. Imaginem se os dizeres da bandeira de nossa nação fossem Liberdade e Progresso... Na prática e na estética soa tão bem e melhor do que Ordem, não? Abaixo a ordem! Abaixo a porra da ordem!
Se formos pensar, os grandes pensadores, revolucionários, líderes e artistas que fizeram algo notável por esse mundo sempre tiveram que lutar contra alguma disposição vigente, contra ceticismos, imperialismos e ideologias tidas superiores. As ferramentas para provar ao mundo suas notabilidades e assim conquistar certa liberdade foram a inteligência a loucura e a ação. Cada qual à sua maneira. Platão, Aristóteles, Arquimedes; Isaac Newton, Einstein, Galileu, Copérnico; Bolívar, Artigas, San Martin, Che Guevara; Elvis, John Lennon, Bob Dylan, Marley, Raul Seixas; Buda, Gandhi, até Jesus Cristo. A sociedade idolatra esses sujeitos, mas parece que hoje ninguém quer ser o tal. Ninguém quer ser o diferente, por incrível e paradoxal que pareça. Medo. Preconceitos. Coerção. Sei lá.

"Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para frente. E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam." KEROUAC, JACK.

Kerouac não tinha a pretensão de ser famoso, nada disso. Apenas queria ser um bom escritor, se dar bem com as mulheres (era tímido) e empregar um novo sentido para sua vida durante o pós guerra. Atravessou durante cinco anos os EUA com descidas frequentes ao México e foi anotando tudo em papéis ou qualquer coisa que pudesse riscar para em 57 escrever o livro em três semanas em um rolo de papel manteiga ininterrupto, que culminou em uma prosa espontânea, rítmica e sensorial, embalado pelo jazz e a base de muito café adoçado com benzedrina. On the Road traduziu no papel o espírito de uma geração perdida, que influenciou posteriormente todos os movimentos de vanguarda do século XX. Muita gente boa bebeu esse caldo. 

A vida pela estrada. Que onda!


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Na época restavam 60 páginas para terminar o livro, quando vi aqui na internet a notícia de que o Walter Salles, de Central do Brasil e Diários de Motocicleta, havia sido o diretor escolhido pelo grande Coppola para fazer a adaptação do livro para as telas. Gostei da escolha, o diários foi muito foda é um dos meus filmes favoritos. Quanto ao Na Estrada (que tradução escrota), já assisti ao filme e posso dizer que ele é muito fiel ao livro, mas prefiro deixar os comentários e a análise para semana que vem (quero ver de novo cinema, 2 horas de filme exige uma boa reprise...). 



Edição que eu achei nas coisas do meu velho
Edição que eu achei nas coisas do meu pai





    Trecho da estrada de terra que liga a praia do Siriú à Garopaba:  destino de muitos jovens porto-alegrenses que buscavam contato com a natureza





                                                Cineview, o Corolla 95 preto rebaixado: muita paciência nos quebra-molas e buracos